quinta-feira, 22 de março de 2007

Dia Mundial da Água: Água, sede e poder


Dia Mundial da Água: 22 de março. Uma data internacionalmente dedicada a se comemorar o valor da água e discutir os problemas relacionados ao uso e conservação dos recursos hídricos. Nos últimos anos, tornou-se quase lugar comum denunciar a degradação de rios, lagos e aqüíferos e, à primeira vista, tem-se a impressão de que já existe suficiente conscientização para a necessidade de tratar melhor os recursos hídricos. Contudo, o leitor deve estar ainda se perguntando: afinal, a situação da água tem melhorado ou piorado no Brasil? Temos algo a celebrar ou as dramáticas cenas de seca, enchentes e poluição vão continuar a inundar as telas da minha televisão? As respostas a tais perguntas são complexas e sujeitas a uma boa dose de controvérsia.

A modernização do Brasil dependeu e depende, em boa medida, do controle dos recursos hídricos. Desde meados do século XX, vendeu-se a imagem de que obras hidráulicas eram necessárias e que beneficiariam a todos. A capacidade hidroelétrica no Brasil cresceu de 370 MW em 1920 para cerca de 60.000 MW no final da década de 1990. A área de irrigação, que era 400.000 hectares em 1950, passa de 3 milhões nos dias de hoje. Porém, o que as comemorações do Dia da Água não mencionam é que, enquanto que a elite sempre faturou com grandes obras, aos mais pobres coube o osso mais duro da geografia nacional. A maior parte dos resultados dessa expansão hidráulica ficou concentrada nas mãos de uma pequena parcela da sociedade (empreiteiros, políticos, burocratas, empresários e classes médias em grandes centros urbanos), mas foi implantada de modo autoritário e produziu impactos socioambientais consideráveis: êxodo rural, desalojamento de populações indígenas, destruição de ecossistemas, alteração do regime hidrológico etc.

Especialmente no Brasil, país que tem as maiores vazões hidrológicas do mundo, torna-se fundamental entender que abundância e escassez de água são conceitos puramente sociológicos, já que as comunidades ecológicas são sistemas inteiramente adaptados à quantidade de água disponível no ambiente. Ou seja, o que se chama de excesso e de falta de água nada mais são do que resultado da degradação ambiental ou conseqüência da injusta alocação de recursos entre os diversos grupos sociais. Não é por acaso que as pessoas com menor renda têm até hoje os piores serviços de água e esgoto (quando têm), convivem de perto com lixo e insalubridade e sentem na pele os impactos da insegurança hídrica. No semi-árido, o resultado socioeconômico de irrigação sempre foi medíocre, já que a seca nordestina continua atingindo a maioria da população que nunca teve e não tem acesso à terra. O problema da seca no Nordeste é, na verdade, um problema de falta de oportunidades. O São Francisco continua sendo um exemplo nítido desse ´ambiente politizado´, o que se reflete agora nas brigas entre caciques regionais (o mais recente capítulo envolve Geddel Vieira Lima (BA) e Ciro Gomes (CE).

Este ano, o Dia da Água tem um simbolismo especial no Brasil, porque também se celebra a primeira década da nova legislação dos Recursos Hídricos (Lei 9.433). A lei definiu novos mecanismos de regulação ambiental, como emissão de outorga (que é um tipo de licença), cobrança pela captação de água, representação setorial e gestão por bacia hidrográfica. Porém, apesar da aparente modernização da legislação, resultados concretos em termos de conservação ecológica e justiça socioambiental são poucos e frustrantes. Ao invés de contribuir para reduzir conflitos e recuperar o meio ambiente, a forma como a nova legislação vem sendo implementada no Brasil nada mais faz do que exacerbar o valor econômico da água. Por detrás de um sofisticado vocabulário de apelo ambientalista, a água continua sendo motivo de divisão, lucro e incerteza. A prova mais evidente da ligação entre a reforma na gestão do uso da água e a acumulação privada está na recente reforma dos serviços públicos, quando se criaram novas condições para a terceirização de serviços públicos através de Parcerias Público-Privadas (PPP), as quais podem utilizar a cobrança pelo uso da água como fonte de investimentos. Também a nova Lei do Saneamento vem facilitar a inserção de grupos privados, mas infelizmente não oferece garantias de atendimento aos mais necessitados.

Claro que empresas comerciais têm uma contribuição fundamental para a gestão de recursos hídricos. Empresas de tecnologia e gerenciamento dispõem de um posição privilegiada para implantar novos sistemas de controle que permitam níveis mais elevados de eficiência. Contudo, o benefício privado nunca pode ser maior do que o interesse da coletividade, como no caso de privatização de empresas públicas ou licitações fraudulentas. Transformar a água em objeto de transações econômicas cria apenas novas fontes de desequilíbrio social, já que a recuperação da degradação ecológica será paga pela população em geral e não pelos responsáveis diretos (indústrias poluidoras, geradores de eletricidade etc). Como demonstra a experiência em diversos países e em partes do Brasil, não é necessário privatizar para se obter ganhos de eficiência e mitigar os impactos ambientais. Ao contrário, o fundamental é a busca de critérios que permitam o atendimento às demandas maiores da sociedade, ao invés de decisões seqüestradas por iniciativas bissextas e sem compromisso de longo prazo.

O debate neste Dia da Água deve apontar as causas políticas e econômicas dos ainda graves problemas socioambientais do Brasil, deixando claro que exclusão social e degradação ambiental são tão somente duas faces da mesma moeda. Seria um equívoco pensar que mecanismos inspirados no mercado, como a cobrança pela água e a privatização de serviços básicos, podem oferecer respostas aos desequilíbrios criados entre atividade econômica e meio ambiente. Falta perceber que gestão ambiental requer muito mais do que atitudes pontuais e isoladas, as quais apenas mantêm um modelo produtivo que inexoravelmente leva à degradação humana e ecológica. Soluções efetivas passam pela democratização do Estado e pela inversão das prioridades que, historicamente, fizeram do nosso país um dos mais desiguais e mais negligentes no trato do meio ambiente.


Antônio A. R. Ioris é professor da Universidade de Aberdeen
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