terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Porque fazemos biodiesel de soja

Acreditando no potencial que a mamona e o dendê teriam em promover a inclusão social (uso intensivo de mão de obra, que, em empreendimentos familiares seria abundante - mas não é) e o desenvolvimento regional (são culturas preferencialmente cultivadas nas regiões Norte e Nordeste), o governo federal elegeu-as como o carro chefe do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB).

Isenções fiscais favoreceram e favorecem as duas oleaginosas que, no entanto, não reagiram. Sua produção (CONAB, 2007), em mil toneladas, nos anos de 1976, 1986, 1996 e 2006 foi de 202, 115, 96 e 108 para o caroço de mamona e de 242, 210, 134, 122, respectivamente, para o óleo de dendê, indicando que a mamona e o dendê precisam mais do que estímulos fiscais e discursos oficiais para serem adotadas pelos agricultores brasileiros.

A produção brasileira de biodiesel de outubro de 2007 deixa clara a preferência dos produtores de oleaginosas e, conseqüentemente, das indústrias de biodiesel: 80%, dos cerca de 50 milhões de litros de biodiesel produzidos no mês pelas usinas instaladas pelo Brasil afora, utilizaram o óleo de soja como matéria prima. Os 20% restantes correspondem à gordura animal (15%) e a outras oleaginosas, que apesar do enorme potencial, respondem por apenas 5%.

Portanto, excetuando a soja, a importância da produção de óleo das demais oleaginosas (mamona, dendê, girassol, pinhão manso, crambe, macaúba, canola, linhaça, gergelim, entre outras) é muito pequena, apesar de apresentarem teores de óleo mais elevados (30 a 50%, contra 18 a 20% da soja).

Noventa por cento do óleo vegetal produzido no Brasil é de soja e outros 4% provêm do algodão, justamente as duas oleaginosas com o menor teor de óleo por unidade de peso. Se assim é, porque essas outras oleaginosas não disputam com a soja a liderança nacional na produção de óleo vegetal, a matéria prima do biodiesel?!

Porque não se produz soja para obter o óleo. O óleo de soja é conseqüência da demanda - sempre crescente - por mais farelo protéico, a matéria prima da ração animal que alimenta o frango, o porco e o bovino confinado, produtores de carne, de ovos e de leite, cuja demanda não pára de aumentar, resultado do crescimento da economia e da renda per cápita, principalmente dos países emergentes. Com mais dinheiro no bolso, os cidadãos desses países estão comprando cada vez mais proteína animal, principalmente carnes.

A razão porque a soja responde pela maior parcela do óleo vegetal brasileiro tem outras causas, além das indicadas acima:

• A soja tem uma cadeia produtiva bem estruturada, tanto antes quanto depois da porteira;

• Dentro da porteira, a soja conta com tecnologias de produção bem definidas e modernas;

• Existe uma ampla rede de pesquisa que assegura pronta solução de qualquer novo problema que possa aparecer na cultura;

• É um cultivo tradicional e adaptado para produzir com igual eficiência em todo o território nacional;

• Oferece rápido retorno do investimento: ciclo de 4 a 5 meses;

• É dos produtos mais fáceis para vender, porque são poucos os produtores mundiais (EUA, Brasil, Argentina, China, Índia e Paraguai), pouquíssimos os exportadores (EUA, Brasil, Argentina e Paraguai), mas muitíssimos os compradores (todos os países), resultando em garantia de comercialização a preços sempre compensadores;

• A soja pode ser armazenada por longos períodos, aguardando a melhor oportunidade para comercialização;

• O biodiesel feito com óleo de soja não apresenta qualquer restrição para consumo em climas quentes ou frios, embora sua instabilidade oxidativa e seu alto índice de iodo inibam sua comercialização na Europa;

• É um dos óleos mais baratos: só é mais caro do que o óleo de algodão e da gordura animal;

• Seu óleo pode ser utilizado tanto para o consumo humano, quanto para produzir biodiesel ou para usos na indústria química e;

• A soja produz o farelo protéico mais utilizado na formulação de rações para animais produtores de carne: responde por 69% e 94% do farelo consumido em nível mundial e em nível nacional, respectivamente.

O dendê, apesar de constituir-se na oleaginosa com o maior potencial de produção de óleo/ha (até 10 vezes mais do que a soja), de usufruir de incentivos fiscais para estimular a sua produção e de contar com uma área potencial de cultivo de, aproximadamente, 70 milhões de hectares, sua real área plantada não passa dos cerca de 60 mil hectares e não deverá mover-se significativamente, a menos que parte dos entraves indicados seguidamente, sejam removidos:

• Alto custo de implantação da lavoura;

• Longa maturação do investimento: 4 a 6 anos de espera;

• A usina precisa estar próxima da produção, pois a matéria prima bruta tem pouco valor comercial, acarretando altos custos de transporte para percorrer longas distâncias. Portanto, só é racional estabelecer uma plantação de dendê próximo a uma indústria já estabelecida ou a estabelecer-se;

• O processamento precisa ser efetuado logo após a colheita (até 48 horas), caso contrário o óleo se rancifica;

• O local mais apropriado para produzir dendê é no ecossistema amazônico, onde o sistema fundiário é caótico, a infra-estrutura é deficiente, a legislação ambiental é restritiva e o mercado consumidor está distante;

• O biodiesel feito com óleo de dendê solidifica no frio do Sul, restringindo sua utilização a regiões de clima tropical;

• A colheita é manual e a mão de obra amazônica é escassa e sem qualificação;

• A pesquisa é escassa e os problemas agronômicos são abundantes e;

• O resíduo tem baixo valor comercial.

Com a mamona não é diferente. Sua vantagem de possuir um teor de óleo elevado - quase três vezes maior que o da soja - desaparece ante as seguintes desvantagens:

• A cadeia produtiva é deficiente (está ainda em formação);

• A produtividade na sua principal região produtora (NE) é baixa (300 a 500 kg/ha);

• O custo de produção é alto, considerando a necessidade de uso intensivo de mão de obra na colheita;

• A mão de obra é escassa, mesmo em estabelecimentos familiares;

• O óleo de mamona não é comestível, é mais caro que o de soja e tem limitações para produzir biodiesel, dadas as suas características de elevada densidade e viscosidade, embora esta característica seja uma importante qualidade na indústria química, por seu alto poder lubrificante;

• A cultura da mamona promove a erosão, estando sujeito à competição com plantas daninhas , por não propiciar adequada cobertura do solo;

• O fruto da mamona tem baixa densidade, incrementando seu custo de transporte, quando a indústria processadora não estiver próxima;

• Conta com pouca pesquisa, resultando na inexistência de variedades produtivas;

• Falta uma estrutura de produção de sementes, obrigando o produtor a utilizar-se de grãos sem qualidade;

• A torta resultante da extração do óleo de mamona é tóxica, não sendo aproveitada para alimentação animal, assim como não pode ser aproveitada a sua parte aérea para o mesmo fim;

• Seu ciclo produtivo é relativamente longo, resultando em retorno tardio do investimento e

• Embora seja considerada planta rústica por sua capacidade de produzir (pouco) em condições de pouca chuva, ela não tolera solo compactado e prefere solos férteis.

A propósito do algodão, a segunda oleaginosa mais importante do Brasil, mas distante da soja, alguém poderia perguntar: mas porque ele não responde com igual desempenho, considerando que o “conjunto da sua obra” é, até melhor que o da soja, pois fornece, além do óleo e do farelo protéico, a fibra?

Respondo: porque a fibra, sendo o carro chefe do agronegócio do algodão, não tem o mesmo apelo de mercado do farelo de soja. As restrições existentes no mercado da fibra do algodão inibem a produção do seu óleo, um produto marginal, no complexo agroindustrial algodoeiro.

Mesmo que seja racional acreditar na redução da dependência da soja como principal matéria prima do biodiesel brasileiro, a soja continuará sendo o carro chefe do biodiesel por muitos anos ainda, se é que algum dia ela será superada por outra planta produtora de óleo vegetal.

Amélio Dall’Agnol - Engenheiro Agrônomo pela Universidade Federal de Pelotas, RS e MSc e PhD pela Universidade da Flórida, EUA. Pesquisador da Embrapa desde 1975.

Fonte: Embrapa Soja
Do:

Ler também: Uso da soja como matéria-prima para a produção de biodiesel

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